sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Abre as asas sobre nós

Deve-se, então, limitar a liberdade do indivíduo para que ele não se torne nocivo aos demais.
(John Stuart Mill, “A liberdade”)

O humorista está proibido de satirizar os políticos; os pais estão proibidos de dar palmadas nos filhos; os torcedores de futebol estão proibidos de brigar a menos de 5 km. dos estádios; os políticos de ficha suja estão proibidos de se candidatar a cargos eletivos; as pessoas estão proibidas de fumar em recintos públicos; não se pode beber e dirigir.

Alguém pode ser contra medidas tão morais, tão higiênicas, saudáveis e anti-discriminatórias?

A questão, na verdade, não é essa. A questão é a que o psicanalista Contardo Calligaris colocou cirurgicamente na sua coluna na “Folha de S.Paulo” desta semana, num artigo sobre a lei da palmada: “Pergunta: para que servem leis que pouco mudam o quadro legal e só explicitam e particularizam proibições que já vigem de modo geral”?

Esse é o problema da excessiva intromissão do Estado na vida dos cidadãos : ele entra em minudências coercitivas da vida particular das pessoas e reitera que é delito aquilo que já era assim definido em outras leis. Ou seja: não há novos delitos, há novas leis, novos regulamentos, novas proibições, inclusive do que já era proibido.Ou antes da existência da Lei da Ficha Limpa o político podia fraudar ou roubar ? Ou antes do Estatuto do Torcedor as torcidas organizadas podiam se massacrar longe, perto ou dentro do estádio ? Ou os bêbados podiam atropelar e matar as pessoas? Ou os pais podiam espancar seus filhos ? Ao criminalizar cada vez mais minuciosamente as transgressões,duplicando ou triplicando a sua tipificação, o Estado faz com que aumente a sensação geral de impunidade.Quanto mais crimes a punir, menos crimes punidos.

Por conveniências políticas, as leis,os regulamentos,os estatutos,as normas, são feitos a toque de caixa, acabam se sobrepondo a leis maiores, às vezes até conflitam com elas, e criam um emaranhado legal cheio de contradições , fissuras, inconsistências e ambiguidades por onde advogados ladinos podem transitar com facilidade e aliviar a vida de seus clientes.

Quanto tempo vai demorar,por exemplo, para que a sociedade se desencante com a Lei da Ficha Limpa? Os legisladores correram para redigi-la e aprová-la a tempo de aplacar o clamor popular que exigia urgência para a medida moralizadora, e na pressa entregaram uma lei com tantas ressalvas,tantos buracos e tão confusa que dificilmente escapará de muitas contestações e alguma declaração de inconstitucionalidade.

Quando Garotinhos, Barbalhos, Malufs e Rorizes começarem a escapar pelos buracos abertos na malha da lei e aparecerem lépidos e fagueiros nas urnas eletrônicas, e depois nas cerimônias de diplomação, todas as boas almas que pressionaram o Congresso irão se juntar às legiões de desencantados que já acham que este País não tem jeito.E a sensação de impunidade ficará mais pesada e difícil de carregar.

Não precisamos de tantas leis e nem de tanta interferência do Estado na nossa vida.Nao precisamos de tutela, precisamos de eficiência.Se as leis que já existem fossem cumpridas , o País seria outro.



Sandro Vaia é jornalista. Foi repórter, redator e editor do Jornal da Tarde, diretor de Redação da revista Afinal, diretor de Informação da Agência Estado e diretor de Redação de “O Estado de S.Paulo”. É autor do livro “A Ilha Roubada”, (editora Barcarolla) sobre a blogueira cubana Yoani Sanchez.

e.mail: svaia@uol.com.br

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